Criação, Evolução, Design Inteligente: que confusão é essa?

A notícia do apontamento do Prof. Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto como o novo presidente da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, entidade responsável por gerenciar a pós-graduação no Brasil) causou furor na mídia e na comunidade científica brasileira. Muita preocupação foi expressa por ele já ter declarado simpatia à chamada “Teoria do Design Inteligente” (TDI) e a partir dela expressar seu apoio ao chamado “criacionismo”, ao mesmo tempo em que muitos cristãos se alegraram por achar que “agora chegou a nossa vez”. Críticas a indicação devido às posições que o professor defende veiculadas pela grande mídia foram recebidas como “veículo X é anticristão”, numa clara suposição de que o cristão verdadeiro deveria tanto apoiar a indicação como defender o Design Inteligente ou o Criacionismo. Mas poucos, ou quase nenhum, dos textos e vídeos sobre a notícia se preocupou em definir ou explicar estes termos, que por si só já são complexos o suficiente. Somados então com o atual clima político do país, os conceitos e suas respectivas histórias e complexidades vão por água abaixo, servindo muito mais para identificação de partidarismo político-ideológico (e até religioso) do que para a real elucidação do que está em jogo com essa indicação e declarações do agora presidente da CAPES.

O que tentarei fazer neste texto é focar na área a qual tenho me dedicado academicamente há vários anos, que é a interface entre a religião e a ciência, com ênfase específica na teoria da evolução de Charles Darwin e o movimento evangélico. Esta é minha área de mestrado e doutorado (sou teólogo com formação em Ciências Biológicas). Não cabe a mim avaliações das implicações políticas associadas à discussão, mas sim trazer luz ao debate que implica os termos que fazem parte do jargão acadêmico com o qual trabalho há muitos anos: Design Inteligente, Criação, Criacionismo, Evolução, evolucionismo e etc. Tentarei ser breve, claro e objetivo, então esse texto não tem o intuito de ser técnico e detalhado como textos acadêmicos.

Criação x Evolução


Logo de saída, há algo que precisa ficar muito claro: evolução e criação não são termos antagônicos, necessariamente. Há cristãos sérios, praticantes, evangélicos e católicos que aceitam a evolução biológica e não são adeptos do chamado criacionismo, e nem mesmo do tal “Design Inteligente” (conforme popularmente entendido). Mas para explicar isso, é necessário definir bem os termos. Infelizmente, tais termos (e outros) adquiriram uma conotação na boca de muitos que os usam que está muito longe do uso que fazem os “profissionais” das áreas e campos que cunharam ou que trabalham diariamente com eles. Por isso, uma maneira de abordar a questão é voltar-se à origem ou a área que detém por direito o termo utilizado.

Por exemplo:

Evolução


Dentre muitas definições possíveis (algumas bastante técnicas) vamos a uma definição operacional simples, dada pelos biólogos, que são as pessoas que usam e trabalham com o termo: evolução é uma teoria científica que explica a origem da biodiversidade no planeta. Veja bem: como ciência que é, ela nada tem a dizer sobre Deus, afinal, Deus como ente imaterial está para além do escopo da ciência. Ou seja, é possível aceitar a evolução como a melhor explicação para a biodiversidade do planeta e crer em Deus, ou não. Isso é consenso entre os filósofos da ciência.

O problema reside no fato de que a evolução é frequentemente entendida (e propagada) como parte de um pacote que inclui o ateísmo. Ou seja, se houve evolução, não há Deus criador. Não ocorre em nenhum momento, para aqueles que entendem dessa forma, que o Deus criador poderia ter usado a evolução para criar. E é justamente assim que o próprio Darwin entendia sua teoria quando da escrita e publicação do seu famoso livro “A Origem das Espécies.”

Na verdade, a teoria da evolução é a maior vítima do que se chama na filosofia da ciência de metaphysical hijacking (sequestro metafísico), ou seja, da incorporação sutil de conceitos filosóficos ou metafísicos (ou seja, que estão além da física) a conceitos científicos de forma a se criar uma conflação e dizer que tudo faz parte do mesmo pacote. Grandes professores e divulgadores de ciência – que fizeram e fazem a mente de muitos de meus colegas biólogos e cientistas, como Sagan, Dawkins, Krauss, Tyson – são notadamente culpados dessa tática, e por isso tão rechaçados nos departamentos de filosofia da ciência. As maiores organizações científicas do mundo se esforçam para justamente desfazer essa compreensão, especialmente com relação a evolução, e promovem a ideia de que ela pode, sim, ser aceita por religiosos, como de fato é, pois ela não tem nada a dizer sobre questões metafísicas.

Criação


É uma doutrina bíblica, compartilhada por cristãos e judeus, que diz que Deus é o criador de todas as coisas. Ponto. Ela não tem nada a dizer sobre COMO Deus teria criado, o que aliás foi ponto de especulação inclusive de Agostinho. Então veja: a crença em um Deus criador é um pilar da fé teísta, então é possível dizer que todo cristão é um CRIACIONISTA. Mas, o que infelizmente ainda poucos no Brasil sabem, é que existem muitos Criacionistas Evolutivos, ou seja, que creem que Deus é o criador e que ele usou a evolução biológica para realizar seus propósitos criativos. Por sinal, essa é a posição oficial da Igreja Católica e muitos evangélicos já se declaram simpáticos, favoráveis ou ao menos abertos a ela.

Um ponto importante a se destacar aqui é que a doutrina da criação é uma CRENÇA, ou seja, uma posição de fé. Assim, podemos dizer que o CRIACIONISMO, entendido conforme acima, é uma visão de mundo, que tem na realidade de um Deus Criador seu maior pilar.

Da mesma forma, alguns autores gostam de fazer uma distinção entre os termos EVOLUÇÃO e EVOLUCIONISMO. O segundo, de acordo com estes autores, seria um -ISMO, ou seja, também uma visão de mundo. Esta seria uma visão naturalista, ateísta, em que a evolução serve de grande pilar para a negação da divindade e afirmação de que a realidade se constitui de apenas matéria e energia. Mas veja bem: o evolucionismo seria então uma CRENÇA – uma cosmovisão – esta sim em oposição à crença cristã de que toda a existência foi criada por Deus. Mas a aceitação da evolução biológica como melhor explicação científica para a biodiversidade NÃO PRESSUPÕE a adoção do evolucionismo, pois como vimos, há cristãos que aceitam a evolução (ciência) mas rejeitam a visão de mundo materialista frequentemente associada a ela (evolucionismo). A evolução seria, para estes, a maneira que um Deus Criador usou para cumprir seus propósitos. Estes são os criacionistas evolutivos (ou criacionistas evolucionários, como alguns preferem). Nomes de peso da teologia cristã protestante como Karl Barth, CS Lewis, Alister McGrath, Tim Keller, John Stott estão entre eles. (Sim, pode pesquisar.)

No entanto, sabe-se que muitos cristãos não aceitam a evolução como a maneira que Deus teria usado para criar os seres vivos, e isso acontece normalmente por causa de sua maneira de ler os capítulos iniciais de Gênesis. Estes adotaram para si o nome de criacionistas, mas como vimos, esta nomenclatura é infeliz, pois designa um grupo particular de opositores da evolução biológica em detrimento de outros criacionistas que a aceitam. Dentre os grupos de criacionistas que não aceitam a evolução, temos dois grupos principais: os Criacionistas da Terra Jovem (CTJ) e os Criacionistas da Terra Antiga (CTA), às vezes chamados de criacionistas progressivos.

Tipos de Criacionismo


Os CTJ são o grupo que rejeita o consenso científico bissecular de que o planeta é muito antigo, atualmente calculado em aproximadamente 4,6 bilhões de anos, afirmando que a Terra não passaria de 6 mil anos. (Alguns grupos defendem outros números, mas que nunca passam de 10 mil anos.) Eles defendem a literalidade absoluta dos capítulos iniciais de Gênesis, afirmando que os dias da criação foram dias literais de 24 horas. Os defensores dessa posição frequentemente se referem a seu movimento como Criacionismo Científico ou Ciência da Criação, e infelizmente também de “posição criacionista”, embora vimos que há outras posições igualmente criacionistas que não compartilham das mesmas ideias. Este é um grupo grande, organizado, de grande poder financeiro. Assim sendo, até pouco tempo atrás, era só literatura deste grupo que chegava às livrarias cristãs quando o assunto era ciência e fé cristã.

Já os CTA, apesar de rejeitarem a evolução, aceitam a história geológica da Terra e afirmam que a escritura não exige que se creia em uma Terra Jovem ou que os dias da criação não necessitam serem entendidos como dias literais de 24 horas (inclusive porque o sol, que determina a duração do dia no planeta, só foi criado no 4º dia, segundo Gênesis 1:6, curiosidade já apontada por Agostinho no séc. IV d.C. ) Assim, eles sugerem leituras alternativas da Escritura de forma a tentar harmonizar a narrativa da criação com um a Terra antiga. As mais comuns são a teoria do GAP e a teoria do Dia-Era.

A Teoria do GAP apoia-se numa leitura alternativa do verbo normalmente traduzido como “era” no versículo “e a Terra era sem forma e vazia”, e o traduz como “se tornou”, afirmando que há uma lacuna de tempo indeterminado entre os versos 1 e 2 de Gênesis cap. 1. Dessa forma, Gn 1:1 – No princípio criou Deus os céus e a terra. Lacuna (GAP) – possíveis milhões de anos Gn 1:2 – E a terra se tornou sem forma e vazia.

Segundo esta interpretação, bastante comum no início do século XX e endossado até hoje pela Bíblia Scofield, Deus teria criado a Terra, bilhões de anos atrás, criado a vida, que teria florescido (v.1), mas por alguma razão a teria destruído num gigantesco cataclismo, tornando a Terra sem forma e vazia (v.2). A história que segue seria, então, a história da recriação, literal, em seis dias de 24 horas, onde Deus criaria Adão, Eva e toda a natureza, novamente.

Já a teoria do dia-era sustenta que os dias de Gênesis 1 não seriam, literalmente, dias de 24 horas, podendo antes ser longos períodos de milhares ou milhões de anos, que correspondem ou não aos períodos geológicos. Ela é apoiada pela interpretação da palavra hebraica yom que é usada na Bíblia de diversas formas, podendo significar dias de 24 horas, dias de 12 horas ou uma quantidade indefinida de tempo. Afinal, “Para Deus, um dia é como mil anos, e mil anos é como um dia.” (2 Pedro 3:8). O maior expoente mundial do Criacionismo da Terra Antiga é o ministério Reasons to Believe, do astrônomo Hugh Ross.

E o Design Inteligente?


Este termo é bem mais complexo de ser explicado, porque se refere a conceitos e ideias que foram mudando sutilmente ao longo do tempo e tem uma longa história de geração e amadurecimento dentro da teologia e filosofia. Não é nosso intuito aqui recontar essa história, por isso focaremos no entendimento atual do termo, que se refere ao Movimento do Design Inteligente (MDI), cujos partidários chamam de “Teoria do Design Inteligente” (TDI). De forma simples, podemos dizer o seguinte:

O MDI é um movimento que postula algumas coisas especificamente. A principal delas é que “certas características do universo e dos seres vivos são melhor explicadas por uma causa inteligente, não por um processo não direcionado, como a seleção natural.”[1] Ou seja, o MDI é, dentre outras coisas, um movimento anti-evolução, isto é, os proponentes acreditam que a teoria de Darwin não dá conta de explicar alguns aspectos e estruturas dos seres vivos. A literatura do DI, que tem no livro “A Caixa Preta de Darwin” do bioquímico Michael Behe sua obra magna, nomeia algumas dessas estruturas como “irredutivelmente complexas”, ou seja, elas seriam tão complexas que não poderiam ter surgido por etapas, como requer a seleção natural, porque se alguma das peças que compõem o sistema vivo for retirada, a estrutura perde sua função. Por isso “irredutível”. Os exemplos clássicos são o flagelo bacteriano, o olho humano, o metabolismo de coagulação nos mamíferos, dentre outros. Assim, eles só podem ter sido criados diretamente, prontos, por um agente inteligente.

O movimento se recusa a dizer quem seria esse agente, mas pesquisas mostram que a imensa maioria dos defensores do DI são cristãos, com mínimas percentagens de judeus, islâmicos e outras religiões. No entanto, o MDI não adentra as questões bíblicas, e tampouco se preocupa com a idade da Terra. Mas, pesquisas mostram que os defensores do DI são em geral criacionistas da Terra Jovem ou da terra Antiga.

Por isso, para a comunidade científica mundial, o MDI não passa de uma roupagem nova do antigo Criacionismo anti-evolução. Mas, aqui é necessário fazer uma distinção importante.

A despeito do Movimento do DI, o conceito de planejamento inteligente (tradução de Inteligent Design) pode ser entendido como um conceito bíblico, uma vez que, como cristãos, entendemos que “Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Salmos 19:1). Assim, o cristianismo entende que a ordem, a beleza e a complexidade do universo apontam para Deus.” Ou seja, nós cremos que tudo o que existe foi planejado, tem um plano e um propósito, e que Deus é o autor deste plano e propósito.

No entanto, o que precisa ficar claro, é que tal afirmação é uma CRENÇA. Nós cremos assim. Filosoficamente, não é possível PROVAR que isso é verdade. É um artigo de fé. Da mesma forma, um ateu, que crê que a ordem, beleza e complexidade do universo não apontam para Deus, também CRÊ nisso. Ele também não pode provar, pois tal afirmação está no campo da metafísica – ou seja, além da física (do mundo material, mensurável). Está para além do que a ciência é capaz de demonstrar. É um artigo de fé, e ambos, o teísta e o ateu, estão no mesmo chão epistêmico: creem em proposições metafísicas, que por definição, não se podem provar pelos métodos das ciências, restritos que são ao mundo físico.

Por isso, o Design Inteligente precisa ser compreendido não como algo que possa ser detectado e provado pela ciência, mas como uma conclusão metafísica/filosófica/teológica que algumas pessoas chegam e outras não. Por isso, a conclusão para a pergunta se há ou não um planejador inteligente depende da cosmovisão do indivíduo, e não de algo que possa ser “provado” ou achado pela ciência. Está no campo da metafísica, da filosofia e da religião. Eu, como cristão, vejo o design. Mas o ateu, não vê, pois ele já não crê em Deus a priori. Por isso, John Henry Newman, maior teólogo britânico sec. XIX, afirmou: “creio no design porque creio em Deus, e não em Deus porque vejo design.” [2]

De certa forma, então, o MDI é uma tentativa de reedição do velho argumento da teologia natural inglesa do séc. XVII e XIX, em que se tentava provar a existência de Deus a partir da natureza e das estruturas complexas que havia nela. Com o advento de Darwin, um mecanismo que produz tais estruturas foi descoberto, mas nem por isso os cristãos deixaram de crer que Deus era esse designer. Charles Kingsley(1819-1875), teólogo cristão, por exemplo, foi um dos mais calorosos em sua recepção às ideias de Darwin, afirmando que “já sabíamos há muito tempo que Deus era tão sábio que poderia fazer todas as coisas. Mas veja, ele é ainda mais sábio do que isso, e fez com que todas as coisas se fizessem a si mesmas!” [3]

Para muitos cristãos da época, e ainda hoje, o que foi descoberto por Darwin foi simplesmente o mecanismo que Deus teria usado para “desenhar” estas estruturas, e de fato, toda a natureza. Por isso, o Design Inteligente, conforme entendido pelo cristianismo bíblico, não é ameaçado nem mesmo pela teoria de Darwin. A natureza pode ter sido planejada e desenhada por Deus através de mecanismo naturais que ele mesmo criou, planejou e sustenta com sua mão poderosa.____________________________



 Tiago Garros é licenciado em Ciências Biológicas pela UFRGS, professor de Ciências e Biologia para Ens. Fundamental e Ens. Médio, mestre e doutor em Teologia pela Faculdades EST, com período de doutorado-sanduíche como aluno reconhecido visitante na Faculty of Theology da Universidade de Oxford. Lá, foi afiliado ao Harris Manchester College, e foi bolsista Oxford-Templeton através do Projeto Cyral, tendo estudado no Ian Ramsey Centre for Science and Religion orientado pelo Prof. Alister McGrath e pelo Dr. Ignácio Silva. É pesquisador na área de interface entre as ciências naturais e a religião, e colaborador da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência.

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Referências:

[1] DISCOVERY INSTITUTE. What is the Theory of Intelligent Design? Disponível em: https://www.discovery.org/id/faqs/  Acesso em: 10 fev 2020.

[2]  Newman, carta a William Robert Brownlow, 13 de abril de 1870; In: NEWMAN, John Henry. The Letters and Diaries of John Henry Newman. DESSAIN, Charles Stephen; GORNALL, Thomas (Eds.). 31 vols. Oxford: Clarendon Press, 1963-2006, vol. 25. p. 97, apud MCGRATH, Alister E. Deus e Darwin: Teologia Natural e Pensamento Evolutivo. Trad. Thaís Semionato. Viçosa, MG: ULTIMATO, 2016, p. 140

[3] KINGSLEY, Charles. The natural theology of the future: A paper read in the hall of Sion College, Jan. 10, 1871. Disponível em: online-literature.com Acesso em: 11 ago. 2017.

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