O antagonismo entre os termos “ciência” e “religião” é sobremodo fácil de ser percebido nos dias atuais. Basta ver quantos cientistas, principalmente das ciências naturais, se declaram abertamente “homens de fé” ou religiosos. “Cientista” e “religioso” é, na visão popular, um oximoro, uma contradição essencial. Em vista do atual cenário, é fácil esquecer que tais campos tiveram convivência pacífica por muitos séculos. De fato, muitos dos próprios artífices da ciência moderna eram teólogos, clérigos, e, não por acaso, cristãos piedosos. Isaac Newton (1643-1727), por exemplo, pai da mecânica moderna, escreveu muito mais linhas sobre interpretação bíblica do que sobre as leis que regem o mundo físico.
Charles Darwin (1809-1882) estudou para ser ministro da Igreja da Inglaterra, e Gregor Mendel (1822-1884), pai da genética, plantava suas ervilhas em um mosteiro em Brno, atual República Tcheca, onde era sacerdote. O ocidente, palco da chamada revolução científica, era terreno fértil para o avanço da investigação científica, pois, profundamente influenciados pela “teologia natural”, entendia-se que o Criador se revelava nos seus dois livros: o da revelação escrita e o da própria natureza. Assim, a ciência através do método científico revelava a própria mente de Deus, o Supremo Criador.
A turbulência entre ciência e religião aparentemente iniciou-se com o famoso incidente de Galileu Galilei (1564-1642), quando este avançou as pesquisas de Nicolau Copérnico (1473-1543) quanto à questão da heliocentricidade do sistema solar, e teve que por fim negar a aceitação de suas descobertas sob pena de ser lançado à fogueira – o que acabou acontecendo com seu contemporâneo Giordano Bruno (1548-1600). Mas o golpe final, que colocou Deus e a ciência frente a frente em uma aparente batalha, foi mesmo dado pelo naturalista britânico Charles Darwin, frequentemente citado como “o homem que matou Deus”, ao publicar seu livro “A Origem das Espécies” em 24 de Novembro de 1859. Ali, ele afirmava que o homem, assim como todo e qualquer ser vivo que habita este planeta, além de ter uma descendência comum com todos os seres, era produto de um longo e gradual processo de modificação biológica, regido por leis naturais, conhecido como evolução. Esta ideia parecia destronar o ser humano da posição de destaque que ocupava como “coroa da Criação”, criado sobrenaturalmente por Deus, colocando-o definitivamente como mais um entre os incontáveis galhos da árvore da vida, um ser efetivamente parte da natureza, e não separado dela.
Atualmente, mais de 150 anos após a publicação do livro, a teoria da evolução das espécies tem indiscutível aceitação nos circuitos científicos. Ela é considerada uma das teorias científicas mais bem embasada por dados empíricos, e é chamada frequentemente de “espinha dorsal da biologia”, ou, nas palavras do geneticista cristão Theodosius Dobzhansky: “nada em biologia faz sentido, exceto à luz da evolução.” (DOBZHANSKY, 1964, p. 449) Mas, surpreendentemente, ela falhou em alcançar este status de aceitação com grande parte da população, no Brasil e no exterior, e, ao que parece, um número expressivo de pessoas negam-na em favor da chamada “posição criacionista”, que defende a literalidade absoluta dos capítulos iniciais de Gênesis no que tange às origens.
Se há alguma dúvida sobre a popularidade de tal compreensão na população brasileira, basta olhar os dados revelados por uma pesquisa do IBOPE publicada em 2005 na Revista Época. A pesquisa aponta que um terço dos brasileiros acredita que o ser humano foi criado por Deus há menos de 10 mil anos, contrariando o consenso científico de que o ser humano habita o planeta por mais ou menos 100 mil anos, e é fruto do processo evolutivo. Comparativamente, à época da pesquisa, nos EUA este número era ainda maior: 55%. Entre os cristãos chamados “nascidos de novo” (identificados com igrejas de cunho evangelical), o número é de criacionistas é maioria absoluta: 90%. (BRUM, 2004)
O embate entre o criacionismo e a teoria da evolução veio, portanto, cristalizar esta noção dicotômica de que ciência e religião estão em lados opostos, sendo necessário a qualquer indivíduo tomar uma decisão do tipo ou/ou, conforme apontou SANCHES (2009, p.12): “a) aceito a Bíblia, logo não aceito a evolução: sou criacionista; b) aceito a evolução, logo, questiono a Bíblia e tenho problema com o cristianismo”.
A exemplo dos EUA, esta discussão já tem adentrado a esfera pública brasileira, principalmente no que se refere ao ensino escolar. Segundo a pesquisa mencionada acima, 89% da população brasileira acha que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas públicas e 79% ainda diz que ele deve SUBSTITUIR o evolucionismo. Tal opinião concretizou-se no Rio de Janeiro, onde a então governadora Rosinha Garotinho, evangélica de origem presbiteriana, aprovou em 2004 uma lei que permitia às escolas ensinarem o criacionismo nas aulas de religião, de acordo com a crença religiosa do professor. No mesmo ano ela manifestou claramente sua opinião, em entrevista ao jornal O Globo: “não acredito na evolução das espécies. Tudo isso é teoria”. (MARTINS; FRANÇA, 2004)
Esta noção de conflito e necessidade de escolha tem sido propagada em anos recentes graças ao alvorecer do chamado “movimento neo-ateísta”, que tem em Richard Dawkins seu principal representante. Este movimento caracteriza-se por um ateísmo militante e catequético, que ataca impiedosamente as religiões. Dawkins é autor de diversos best-sellers, tanto no Brasil como nos EUA e Europa, dentre os quais “Deus: Um Delírio” (2006) – livro que segundo ele “saiu sim, para converter!” (DAWKINS, 2006, p. 159) – onde afirma:
O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo. (DAWKINS, 2006, p. 51)
A ciência (e um extremo materialismo científico) é o grande argumento de Dawkins e seus correligionários: “A hipótese de Deus é uma hipótese científica, e deve ser analisada ceticamente como qualquer outra.” (DAWKINS, 2006, p. 24)
Tal ideia é ecoada por aqueles que, teoricamente, estão do outro lado do campo de batalha – a saber, os próprios criacionistas. Henry Morris (1918-2006), considerado o pai do movimento criacionista moderno, afirma:
Não há prova científica de que a Terra é velha. Não há qualquer evidência de que houve evolução de um organismo menos complexo para um mais complexo. […] A revelação divina do Criador do mundo afirma que Ele fez tudo em seis dias há alguns milhares de anos atrás. […] A Bíblia contém todos os princípios básicos sobre os quais VERDADEIRA ciência é feita. […] A Bíblia é um livro de ciência! [sic] (MORRIS, 1994. p. 4-5; 1980, p. 229; 1982. p. 75)
Estes dois grupos evidenciam a noção popular de relacionamento entre religião e ciência: os dois campos estão em notório e irreconciliável conflito. Ian Barbour (1923-2013), pHd em física e célebre erudito das relações ciência/religião identifica estes dois grupos como representantes extremos da “tese do conflito”4. Segundo Barbour, “tanto o literalismo bíblico e o materialismo científico alegam que ciência e religião têm verdades literais e rivais a afirmar sobre o mesmo domínio – a história da natureza – de modo que é preciso escolher uma delas. (BARBOUR, 2000, p. 25)
Barbour, no entanto, nos alerta que esta visão aparentemente dominante de conflito ou oposição é apenas uma das maneiras de considerar as relações entre ciência e religião. É a maneira mais explorada e propagada na mídia mundial, pois, obviamente, o cenário beligerante vende mais jornais e revistas, mas de modo algum é a única visão possível e nem mesmo uma visão necessária. Passaremos agora a explorar os outros modos de relação que têm sido sugeridos para abordar o binômio ciência/religião.
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Artigo produzido por Tiago Valentim Garros, Biólogo, Mestre em Teologia, Doutorando pela Faculdade EST. Bolsista da Capes. E-mail: tiagogarros@gmail.com